“Quando a lenda se torna facto, imprime-se a lenda.”
O ápice da lenda em 20.000 dias na Terra está nos momentos em que
Cave passeia por Brighton de carro, e recebe visitas de fantasmas do
passado, como Kylie Minogue, que dividiu com o músico um single de
sucesso nos anos 90. A única pessoa concreta, afastada do clima etéreo
das outras participações, é Warren Ellis, o parceiro de longa data de
Cave, uma âncora familiar e pacífica na tempestade orquestrada do filme.
Privar o espectador leigo de traduções nas letras cantadas por Nick
Cave causa uma grande perda na mitologia do compositor. Cave é um
trovador de “murder ballads”, distorce personalidades e factos até o
ponto de quebra, criando narrativas assustadoras e magnéticas sobre
assassinato, obsessão, depravação, angústia. Os directores britânicos
responsáveis pelo documentário o filmam como um noir desvelado cena a
cena, com panorâmicas e tracking shots lentas, viagens de carro e cenas
nocturnas centralizadas no anti-herói solitário de Cave. Na montagem
final, Iain Jane e Jonathan Amos brilham, fundindo o passado e
presente usando como raccords os movimentos de Cave no palco.
“Eu consigo controlar o tempo com meu temperamento, só não consigo
controlar meu temperamento.”
Em apenas uma frase, Nick Cave descreve a
essência do seu trabalho – a capacidade de conjurar tempestades e
distorcer a atmosfera de qualquer pequeno evento prosaico, transformando
homens em monstros e monstros em lendas. A única coisa que Cave não
consegue transformar é a si mesmo, sua própria lenda, cristalizada e intemporal.